MORALES E A MODERNIZAÇÃO DA BOLÍVIA, Guillermo Almeyra (*)

fevA Bolívia está promovendo três revoluções simultâneas: uma, democrática, descolonizadora, modernizadora; outra, cultural, eliminadora do atraso e da barbárie impostos pelo passado de exploração e submissão, a terceira, social, de conteúdo anticapitalista objetivo. Evo Morales e seu governo conduzem as duas primeiras com grande vigor e decisão, mas as formas e o conteúdo da terceira estão ainda indefinidos.

Dois casos recentes ilustram as dificuldades que derivam do passado. O primeiro é o do intelectual aymara e ex-ministro Félix Patzi, que passou de candidato, faz pouco, a governador de La Paz, e que acaba de integrar a oposição e tentar formar seu próprio partido camponês sobre bases racistas (fala que os ministros brancos o perseguem). O outro é o da negativa do Estado Maior das forças armadas em proporcionar à Justiça os documentos sobre a ditadura e os desaparecimentos e torturas. Analisemos esses casos.

O governo, por vias legais, havia declarado que dirigir em estado de embriaguez constituía um delito punível com cadeia, como em qualquer país civilizado. O sindicato de choferes de ônibus declarou uma greve de 48 horas para revogar essa medida, defendendo obviamente o “direito” de conduzir bêbado e, além do mais, Patzi foi pego conduzindo alcoolizado e Evo Morales, de imediato, assim como o MAS, seu partido, eliminaram-no automaticamente como candidato a governador da principal cidade boliviana, apesar de sua popularidade e seu apoio organizado.

Patzi, para completar, primeiro mentiu ao tratar de explicar sua bebedeira, dizendo que vinha do inexistente velório de uma prima. Ou seja, opôs os usos e costumes (nos velórios todos bebem) à lei estatal e, depois, chegou ao cúmulo de ir para sua zona natal para que sua comunidade lhe aplicasse um castigo (fazer mil ladrilhos de adobe em três dias). A impossibilidade material de cumpri-lo nesse curto lapso (reduzido por entrevistas e reuniões) constituía, por si mesma, outra mentira evidente e, uma vez mais, uma intenção de opor os usos e costumes à lei estatal (ainda que, do ponto de vista daqueles, o castigo tivesse sido estabelecido pela comunidade onde Patzi cometeu o delito, e não por sua comunidade originária).

A lei da República foi violada em nome da incorporação dos usos e costumes à Constituição, mas pisoteando-se ao mesmo tempo o preceito indígena oficial de “não mentir”, aproveitando que na Bolívia, como em muitos outros países, embebedar-se é algo muito comum e coisa de homens. As decisões legais tendentes a fortalecer o Estado, de outro lado, chocaram-se, além do mais, neste caso, com o indigenismo racista de Patzi (e de seus seguidores atrasados que crêem que os exploradores são apenas os k’aras, os brancos, quando há capitalistas aymaras) e com o nepotismo e o clientelismo do ex-ministro durante seu período de administrador público, assim como com o corporativismo da Federação Camponesa de la Paz, que o seguiu acriticamente, e sobre a qual Patzi tenta construir seu partido oposicionista.

No caso do controle militar e de sua oposição à Justiça, atuam diversos fatores (como, por exemplo, influência no alto comando das forças conservadoras e contra-revolucionárias nacionais e estrangeiras), mas predomina novamente o corporativismo. Os militares de hoje encobrem os ditadores e assassinos do passado porque “cachorro não come cachorro” e porque esperam que, no futuro, sejam brindados com a mesma solidaridade de casta. Entretanto, em um Estado moderno – e Morales quer modernizar a Bolívia – os militares estão submetidos às leis e aos poderes estatais e não são um corpo que possa funcionar em autogestão. Novamente, as intenções de tirar a Bolívia do atraso (a bebedeira, o clientelismo, a corrupção, a arbitrariedade das corporações) para impor uma Constituição, um estado de direito e construir, pela primeira vez em sua história, um verdadeiro Estado capitalista, chocam-se com a espessura político-cultural do colonialismo e o pré-capitalismo. E isso não se elimina em um par de anos, mas requer uma longa revolução cultural. Não é suficiente, pois, ganhar o governo e obter um apoio popular de 80% contra a reação se não se tem realmente o poder e se esse apoio massivo é muito menor em quase todos os aspectos da vida política e cotidiana, que, para o bem e para mal, estão muito marcadas pelo passado.

Aqui entra o problema da terceira revolução, a anti-capitalista, que figura nas aspirações de Evo Morales e Álvaro García Lineras, mas não permeia nem as medidas de seu governo nem a ação de seu partido, o MAS. Em primeiro lugar, este partido é um pool de interesses corporativos, uma aliança de organizações sindicais e sociais com suas burocracias respectivas, e não está em condições de orientar o governo. Em segundo lugar, segundo as tradições nacional-desenvolvimentistas da revolução de abril de 1952, o governo confia no aparato estatal para industrializar o país e não nas capacidades de autogestão e construção de uma economia alternativa da parte dos operários e camponeses. Depende, pois, como em outros tempos, de uma economia extrativista, exportadora e da produção pelo Estado do mesmo que produziam os capitalistas privados. Constrói, assim, o capitalismo de Estado e tenta criar um aparato burocrático para dirigi-lo e utiliza o apoio massivo como se fosse sua infantaria de choque, mas sem que os trabalhadores discutam e decidam o que fazer nesse território e com que recursos. Mas tampouco isto se consegue rapidamente e depende, além do mais, dos avanços da revolução cultural e da situação econômica internacional.

(*) Jornalista

Fonte: La Jornada, 21 de fevereiro de 2010

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