A MONTANHA DE PRATA (parte II)
Logo ficamos sabendo de um passeio “turístico” que se faz dentro da montanha. Os três viajantes, todos sociólogos, discutimos o assunto para ver a possibilidade de realizarmos o dito passeio. O que nos incomodava era ver os mineros trabalhando como num formigueiro, e nós os observando. Chegamos ao consenso de que faríamos o passeio com a condição de que não sacaríamos fotos do que se passa lá dentro, levaríamos o que víssemos em nossa memória.
No dia seguinte partimos para a montanha em uma mini-van junto com um grupo de estudantes universitários bolivianos. Primeiro a van pára em um dos bairros mineros. Lá compramos refrigerantes, os quais seriam requisitados pelos mineros dentro da mina. A pobreza dos bairros mineiros mostra sua face, através da mendicância e falta de estrutura das casas.
À medida que se sobe a montanha repara-se nos inúmeros entulhos de pedras e nas inúmeras colorações da montanha. Fomos até quase atingir seu cume. Nosso guia Éric, uma pessoas engajada na luta dos mineros, nos conta que a montanha diminuiu 300 metros de altura ao longo dos tempos de exploração, e mais uns tantos metros de diâmetro. A montanha foi estatizada e são dadas concessões às cooperativas de mineros para sua exploração, uma forma de aluguel dos vários setores da montanha.
Entramos pela principal boca mina por onde entram os mineros. Nos primeiros momentos lutei contra minha claustrofobia, enquanto se vê a entrada de luz ficando pra trás e à frente a escuridão. Com concentração consegui continuar. À medida que se afunda na montanha a temperatura se eleva, contrastando com o frio externo. Também a suspensão de pó no ar se torna insuportável, dificultando a visão e a respiração. Daí a alta incidência da doença silicose entre mineros. Recordei-me da população de Raposos, assolada pela doença, dos pais e avôs de meus alunos, de seus relatos aflições e problemas. Após passar 3 horas dentro das montanha passei duas semanas expelindo o pó da montanha.
Logo nos deparamos com os primeiros mineros. Ao passarem por nós o fizeram com as cabeças baixas, com as bocas cheias de folha de coca e nos cumprimentando. Geralmente passavam em grupos de quatro pessoas arrastando um vagão que pesa em média uma tonelada que a todo o momento descarrilava. Éric nos informou que cada vagão vale 100 bolivianos, o que em reais são mais ou menos 30 reais. No meio do caminho em direção ao coração da montanha, nos deparamos com a entidade proprietária da montanha, o diabo, ou como o chamam por lá o “Tío”. Diz a tradição indígena local que houve uma batalha entre o Tio e os representantes de Deus na cidade histórica de Oruro (dona do principal carnaval da Bolívia, cheia de tradições que atravessam os tempos, considerado patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO). Claro, houve um sincretismo entre a religião indígena e a católica, mudando o nome de alguns dos personagens, mas mantendo a base da história. Diz a lenda que a cidade seria invadida por formigas, uma serpente e um lagarto gigantes. Mas os enviados de Deus transformaram as formigas em areia, a serpente em pedra e o lagarto em mato. Impressionantemente, ao norte de Oruro se encontra um deserto, uma montanha que tem uma forma cilíndrica enrolada ao longo dela e uma parte onde a vegetação, quando vista de cima, se aparenta com um lagarto. Após a batalha perdida, el “Tio” se embrenhou na terra, da qual se tornou dono. Por isso a reverência ao Diabo dentro das minas, pois são seus domínios. Aos pés da estátua repousavam inúmeras folhas de coca, uma garrafa de álcool puro, cigarros sem filtro e um feto de Lhama. A cerimônia para entrada nas minas requer a oferenda e a ingestão do álcool puro. Para suportar o penoso labor minero se embriagam, mascam coca e fumam o cigarro, assim suportam o frio, o calor, o cansaço e a fome. Voltando ao Brasil, ao conversar com um sábio professor boliviano, fui informado de que a razão pela qual os mineros não nos olhavam na face é uma tradição das minas, pois dizem que o “Tio” caminha por seu território vestido de minero, mostrando apenas a face. A estátua visitada por nós havia sido feita por um minero chamado Jorge há muito tempo atrás. Segundo eles, o espírito de Jorge repousa por lá, e por isso deixam um caminho de bandeirinhas que leva à saída da mina, para que guie seu espírito em tempos de carnaval.
Caminhando mais um pouco encontramos uma fenda recém aberta pelos mineros, um buraco no chão de um metro quadrado com uma escada encostada. O guia nos pergunta quem gostaria de entrar no buraco avisando sobre a alta temperatura e o pouco espaço. Em situações normais eu jamais faria isso, mas eu precisava ver o que se passava lá embaixo. Fomos umas cinco pessoas dos quinze presentes. Lá embaixo, após descer a escada num túnel escuro e rastejar alguns metros chegamos a uma galeria um pouco maior, com o calor de uns 40 graus. Lá estavam os mineros abrindo a rocha com picaretas e outros instrumentos. Eric nos mostrou como se faz para abrir buracos como aquele. Primeiro um pequeno buraco onde é colocado a dinamite. Acendem o explosivo e saem correndo. Volta-se ao local depois de um dia, quando a maioria dos desmoronamentos já terá acontecido. Após isso o trabalho é manual. Não é de se surpreender o alto misticismo do universo cultural minero, sujeitos aos desmoronamentos, doenças, ao cansaço, a pobreza e a sorte para que encontrem ventas de prata e ao azar da morte. Tal universo é constituído em sua base pela cultura indígena mas também pela cultura africana, visto que na época da colônia foram trazidos milhões de africanos para trabalhar nas minas. Eles quase todos dizimados pela montanha, pela altitude e frio, influenciaram fortemente a cultura boliviana. A “morenada”, tradicional ritmo boliviano, conta as estórias dos africanos na Bolívia, sendo o compasso da matraca uma imitação do som das correntes que os prendiam em seus pés.
Saber sobre as terríveis condições de trabalho nas minas é uma coisa, outra é você presenciá-las. É o ofício mais debilitado que já tive conhecimento, devendo se pensar até mesmo sobre a proibição do trabalho manual em minas. Já tinha conhecimento teórico de como se dá o trabalho minerador, mas ver a exploração do homem em seu estado puro foi a coisa mais impressionante que já fiz em minha vida. Sobre as condições de trabalho na época da colônia, diz Galeano:
A mita era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para a extração de prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair o cabelo, os dentes e provocava tremores incontroláveis. Os “azogados” se arrastavam pedindo esmolas pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras ardiam na noite sobre as ladeiras da montanha, e nelas se trabalhava a prata, valendo-se do vento que o “glorioso Santo Agostinho” mandava do céu. Por causa da fumaça dos fornos não havia pastos nem plantações num raio de seis léguas ao redor de Potosí, e as emanações não eram menos implacáveis com os corpos dos homens. As temperaturas glaciais do campo aberto alternavam-se com os calores infernais do fundo da montanha. Os índios entravam nas profundidades, e ordinariamente eram retirados mortos ou com cabeças e pernas quebradas, e nos engenhos todo o dia se machucam. Os mitayos retiravam o minério com a ponta de uma barra e o carregavam nas costas, por escadas, à luz de uma vela. Fora do socavão, moviam enormes eixos de madeira nos engenhos ou fundiam a prata no fogo, depois de moê-la e lavá-la.
Hoje a produção de prata é ínfima, o principal minério extraído ali agora é o estanho, recusado antes pelos espanhóis. Ainda existe uma média de cinco mortes por mês na montanha. Totalizam oito milhões de mortes. Esta é a montanha que desde 1545 produz riqueza para poucos e pobreza para muitos.
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